Como parte das manifestações promovidas para relembrarem o dia
Primeiro de Abril de 1964, fui o palestrante de um evento realizado no
Instituto Miguel Arraes, em que relatei os fatos ocorridos naquele dia e mais
alguns dados relativos à minha ligação por mais de 40 anos com o grande líder
que foi Miguel Arraes. A parte central, relativo ao dia 1° de abril, recebeu
uma leitura do compositor e poeta Caetano Veloso constante do vídeo ao lado e,
para melhor compreensão, segue o texto integral da aludida palestra:
“Relutei muito para decidir
se deveria escrever essa palestra ou, de improviso, correr o risco de me trair
pela emoção e dizer algumas inconveniências. Preferi escrever e faço aqui um
relato sucinto da ocorrência que mais me impressionou naquele dia 1º de abril
de 1964 e outras acontecidas no decorrer da minha vida, sempre ligadas a Dr.
Arraes. Vou direto à primeira:
Desde a véspera, 31 de
março, surgiam boatos desencontrados e realçados pela precariedade dos
noticiários existentes, como sempre arrebanhando a opinião pública através de
uma imprensa predisposta a servir ao poder dominante, ao sabor de suas
conveniências. As conversas se prolongavam, em ritmo sempre vibrante e variado,
sobre revolução, contra-revolução, golpes de estado, participação “yankee”,
disposição de lutas, covardias e empáfias.
Começo a perceber gente
arrumando malas e víveres em seus carros e saindo como apressados viajores.
Imagino que devo fazer alguma coisa, tomar alguma atitude, romper uma
passividade que me incomodava. Passei na empresa que dirigia, assinei alguns
papéis mais urgentes e dirigi-me de imediato ao Palácio do Campo das Princesas.
Percebo logo uma intensa
movimentação de tropas militares em seu entorno, sem interferirem, entretanto,
no ingresso das pessoas ao Palácio. Até aquela hora todo mundo entrava ou saía
sem dificuldades e ali encontro centenas de pessoas que não mais consigo
relembrar com segurança e não quero cometer a injustiça de omiti-los.
Assisto a chegada do
Comandante do Distrito Naval, Almirante Dias Fernandes que, trancado com Dr.
Arraes no seu gabinete juntamente com Pelópidas Silveira e Celso Furtado,
trazia uma proposta indecorosa em nome de um suposto Comando, que asseguraria a
permanência do Governador à frente do Executivo desde que manifestasse apoio
irrestrito à quartelada que já se anunciava. Proposta recusada, como todos
sabem. Porém, enquanto se realizava a reunião, as tropas do exército ocuparam a
Praça da República com ninhos de metralhadoras estrategicamente colocadas
visando o Palácio e sustando a entrada de qualquer pessoa daquela hora em
diante. Depois, as comunicações foram cortadas e fomos desligados do mundo
exterior. O corpo da guarda palaciana foi ocupado pelo Exército e ninguém mais
saia do Palácio.
A uma certa altura,
aproxima-se pelo terraço dos fundos o Coronel Dutra de Castilho, até então
Comandante do 14º Regimento de Infantaria, e manifesta a intenção de falar
pessoalmente com o Governador.
Dr. Arraes desce do
primeiro andar e vai ao encontro do Coronel nos limites do terraço dos fundos.
Com uma inevitável curiosidade, fico junto e acompanhei o incidente em todos os
seus detalhes. Estabelece-se então o diálogo, surrealista para os dias de hoje,
mas que considero definidor, com extrema clareza, da situação vivenciada pelos
interlocutores e de suas posições antagônicas.
Não conseguiria transcrever
literalmente, mas vou tentar reproduzi-lo com a máxima fidelidade possível,
sendo de notar que, em um fim de noite após o cumprimento de sua exaustiva
agenda, quando ficávamos prosando até tarde, conferi com Dr. Arraes todos os
detalhes.
Inicia-se a conversa e
percebia-se, com absoluta nitidez, que o Coronel estava visivelmente emocionado
e, em nenhum momento, deixou de tratar Dr. Arraes por “excelência”. Diz o
Coronel:
“Venho comunicar que V. Excelência está deposto.”
Responde Dr. Arraes:
“O senhor não tem autoridade para me depor. Sou Governador do
Estado eleito pelo povo de Pernambuco e somente ele pode me depor. Ou então o
senhor quer dizer que estou preso e isso o senhor pode fazer pela força.”
Retruca o Coronel:
“De forma alguma, Excelência. Pelo contrário, lhe daremos todas as
garantias cabíveis.”
E aí Dr. Arraes
responde-lhe serenamente e de forma profética:
“NÃO PRECISO DE SUAS GARANTIAS. SOU O GOVERNADOR DE PERNAMBUCO E
EXERCEREI O MEU MANDATO ATÉ O ULTIMO DIA, ESTEJA ONDE ESTIVER.”
Feito e dito isso, Dr.
Arraes encerrou o episódio e retornou ao Palácio. Este diálogo não necessita explicação, nem
exige analista ou cientista político para interpretá-lo. De um lado, o poder da
força, da imposição, da tutela, sedimentado em especulações delirantes dos
militares sequiosos do poder.
De outro lado, a afirmação
democrática de um governante altivo, impávido, destemido e legitimado por uma
eleição submetida às regras republicanas e reagindo às demonstrações de força,
comandadas pelas corporações obscurantistas, politicamente orientadas por um
“udenismo” desesperado diante das sucessivas derrotas eleitorais.
Pouco tempo depois, subiu
ao primeiro andar um capitão do exército (vejam como a patente foi baixando),
determinando que daquela hora em diante somente permaneceriam no Palácio o
Governador e os seus familiares. Os demais teriam um pequeno prazo para deixar
o Palácio.
Aí acontece a parte mais
constrangedora do episódio: o Governador Miguel Arraes postado em frente do
elevador do primeiro andar, despede-se e aperta a mão, um a um, de todos os
presentes que foram obrigados a retirar-se do Palácio naquele momento.
Ainda um fato importante
deve ser destacado pois, a despeito de ter ocorrido antes de 1964, foi fator
determinante para a eclosão da golpe de 1964. Assisti, em novembro de 1963, no
Salão das Bandeiras do Palácio do Campo das Princêsas, naquela longa mesa que
ainda hoje existe, a assinatura do famoso Acordo do Campo. De um lado da mesa
os usineiros e senhores de engenho (hoje denominados plantadores de cana) e do
outro lado os camponeses maltrapilhos, com Dr. Arraes sentado à cabeceira da
mesa dirigindo os trabalhos.
Esse acordo que completou
50 anos recentemente e, de forma lamentável, sem qualquer registro ou
comemoração por iniciativa dos sindicatos e centrais sindicais rurais, foi um
marco regulatório nas relações de trabalho no campo, com repercussão no Brasil
e cultuado no mundo inteiro pelas instituições trabalhistas.
Dr. Arraes nunca foi
perdoado pelos patrões, não pelas razões econômicas que lhes foram favoráveis,
mas por terem de sentar à mesma mesa com os trabalhadores, fato sociologicamente
inadmissível para eles, que consideravam o evento uma suprema humilhação.
E tanto foi assim que, após
a tramitação dos fatos descritos e ocorridos no Palácio no dia 1º de abril, fui
conduzido ao Quartel General do Exército com outros companheiros e, recebidos
pelo Cel. Bandeira, fomos encaminhados presos para o 7º R. O. em Olinda numa
operação de remoção comandada pelo usineiro José Lopes de Siqueira Santos, da
Usina Estreliana, com uma metralhadora à tiracolo e dando ordens aos militares
do exército.
O incidente reflete verdadeiramente
a autoria da inspiração, das manobras e da execução do golpe militar. Pelos
antecedentes do aludido usineiro e pela autoridade que ostentava no comando da
operação, imaginei que não chegaríamos ao destino previsto e quando fomos
enfileirados no Corpo da Guarda daquela unidade militar, raciocinei: “Graças a Deus estamos presos”.
Costumo dizer que
sou um privilegiado na medida em que fui distinguido pela oportunidade de
testemunhar episódios que registram a marca de um grande patriota e líder político brasileiro. A sua história e
grandeza precisam ser conservadas para exemplo das gerações que o sucederem. Estou
aqui cumprindo um dever que considero fundamental para esse registro, antes que
a “traiçoeira” me arrebate desse convívio.
Sinto ainda
necessidade de registrar algumas lições que recebi do Dr. Arraes que marcam a
sua personalidade singular. Coordenei, também com muito orgulho, o programa de
eletrificação rural nos dois governos de Arraes, depois reconhecido como o
maior programa da América Latina. Criticado por seus adversários sob a alegação
de que suas iniciativas não eram estruturadoras para o desenvolvimento do
Estado e sua população, Dr. Arraes respondia com muita sabedoria: “Não conheço nada mais estruturador para
um cidadão do que uma caneca de água limpa para beber e um bico de luz para
alumiar a escuridão”.
Por isso mesmo, peço
permissão para quebrar o protocolo e fazer uma digressão que talvez desvirtue o
sentido deste evento. São episódios pessoais, mas estreitamente ligados a Dr.
Arraes:
Sou um velho já meio
cansado que nunca amealhou riquezas, nem colecionou comendas. Não guardo
rancores, nem alimento ressentimentos. Mais de oitenta anos de vida dura e
difícil – sabe Deus como! – alternando temporais e bonanças, mas sempre
adorando a vida que, por vezes, é gratificante. Sempre tive lado e costumo
dizer que “A Coerência é o Caminho Mais Espinhoso da Política”.
Tive dois grandes
Mestres na vida: o meu velho pai Zébatatinha que me ensinou o roteiro da
dignidade, da cidadania e do apreço à família e Dr. Miguel Arraes – meu líder
político e amigo durante mais de quarenta anos – que traduziu para mim o dever
de servir à população com honradez e espírito público.
Desnudo-me, nesta
hora, para externar minhas fragilidades e humildemente confesso minhas vaidades
e orgulhos. Aí vai o primeiro desses episódios: Por ocasião da morte do meu
filho mais velho (como dói enterrar um filho!) recebi uma mensagem que me
sensibilizou e me levou às lagrimas. Dizia assim:
"Meu querido
Ivan, É com grande tristeza que recebo a notícia do falecimento de José Ivan.
Esta é a razão pela qual manifesto a minha presença junto à sua dor e a dos
seus. Você é um exemplo, um amigo mais que querido. Quando nosso pai já se foi,
a gente escolhe outro. No meu caso, você. SE FOR BEM ACEITO. Com meu abraço
afetuoso Lula Arraes.”
Depois de enxugar as lágrimas, respondi-lhe:
“Meu querido Lula: Fiquei um bom tempo sem saber o que lhe
responder, o que só agora consigo. ACEITO COM MUITA HONRA. Costumo dizer à
família que deixarei para ela apenas um nome honrado. Achei que isso me
bastava, mas você arrebentou a carapaça e descobriu minha fragilidade: Sou um
vaidoso e fiquei impando de orgulho ao me imaginar complementando (nunca
substituindo!) o exemplo de grandeza na vida pública que conheci e dou
testemunho. Sou duro na queda, mas confesso que chorei ao ler sua carta. Deus
lhe guarde e a toda família Arraes. Grande abraço e minha benção.”
Recentemente, ocorreu o segundo episódio: Após uma dessas
atribulações que passei em minha vida, recebi a observação de uma pessoa que
conheço desde criança, muito amiga e bastante credenciada para fazer o
comentário e que, mesmo sem que eu refira o nome, todos entenderão de quem
falo. Em conversa com um amigo comum, essa pessoa afirmou:
“Não adianta. Ivan é tão ranzinza quanto meu avô!”
Meus caros amigos. Desculpem a quebra do protocolo e da liturgia,
mas se realmente eu mereço a honraria quero dizer a todos que muito me orgulho
e me envaideço dessa comparação. Posso afirmar, do mesmo modo que meu velho
Zébatatinha diria: MESMO RANZINZA, EU
SOU UM HOMEM FELIZ !”
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