quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

PRIMEIRO DE ABRIL DE 1964


Como parte das manifestações promovidas para relembrarem o dia Primeiro de Abril de 1964, fui o palestrante de um evento realizado no Instituto Miguel Arraes, em que relatei os fatos ocorridos naquele dia e mais alguns dados relativos à minha ligação por mais de 40 anos com o grande líder que foi Miguel Arraes. A parte central, relativo ao dia 1° de abril, recebeu uma leitura do compositor e poeta Caetano Veloso constante do vídeo ao lado e, para melhor compreensão, segue o texto integral da aludida palestra:

“Relutei muito para decidir se deveria escrever essa palestra ou, de improviso, correr o risco de me trair pela emoção e dizer algumas inconveniências. Preferi escrever e faço aqui um relato sucinto da ocorrência que mais me impressionou naquele dia 1º de abril de 1964 e outras acontecidas no decorrer da minha vida, sempre ligadas a Dr. Arraes. Vou direto à primeira:

Desde a véspera, 31 de março, surgiam boatos desencontrados e realçados pela precariedade dos noticiários existentes, como sempre arrebanhando a opinião pública através de uma imprensa predisposta a servir ao poder dominante, ao sabor de suas conveniências. As conversas se prolongavam, em ritmo sempre vibrante e variado, sobre revolução, contra-revolução, golpes de estado, participação “yankee”, disposição de lutas, covardias e empáfias.

Começo a perceber gente arrumando malas e víveres em seus carros e saindo como apressados viajores. Imagino que devo fazer alguma coisa, tomar alguma atitude, romper uma passividade que me incomodava. Passei na empresa que dirigia, assinei alguns papéis mais urgentes e dirigi-me de imediato ao Palácio do Campo das Princesas.

Percebo logo uma intensa movimentação de tropas militares em seu entorno, sem interferirem, entretanto, no ingresso das pessoas ao Palácio. Até aquela hora todo mundo entrava ou saía sem dificuldades e ali encontro centenas de pessoas que não mais consigo relembrar com segurança e não quero cometer a injustiça de omiti-los.

Assisto a chegada do Comandante do Distrito Naval, Almirante Dias Fernandes que, trancado com Dr. Arraes no seu gabinete juntamente com Pelópidas Silveira e Celso Furtado, trazia uma proposta indecorosa em nome de um suposto Comando, que asseguraria a permanência do Governador à frente do Executivo desde que manifestasse apoio irrestrito à quartelada que já se anunciava. Proposta recusada, como todos sabem. Porém, enquanto se realizava a reunião, as tropas do exército ocuparam a Praça da República com ninhos de metralhadoras estrategicamente colocadas visando o Palácio e sustando a entrada de qualquer pessoa daquela hora em diante. Depois, as comunicações foram cortadas e fomos desligados do mundo exterior. O corpo da guarda palaciana foi ocupado pelo Exército e ninguém mais saia do Palácio.

A uma certa altura, aproxima-se pelo terraço dos fundos o Coronel Dutra de Castilho, até então Comandante do 14º Regimento de Infantaria, e manifesta a intenção de falar pessoalmente com o Governador.

Dr. Arraes desce do primeiro andar e vai ao encontro do Coronel nos limites do terraço dos fundos. Com uma inevitável curiosidade, fico junto e acompanhei o incidente em todos os seus detalhes. Estabelece-se então o diálogo, surrealista para os dias de hoje, mas que considero definidor, com extrema clareza, da situação vivenciada pelos interlocutores e de suas posições antagônicas.

Não conseguiria transcrever literalmente, mas vou tentar reproduzi-lo com a máxima fidelidade possível, sendo de notar que, em um fim de noite após o cumprimento de sua exaustiva agenda, quando ficávamos prosando até tarde, conferi com Dr. Arraes todos os detalhes.

Inicia-se a conversa e percebia-se, com absoluta nitidez, que o Coronel estava visivelmente emocionado e, em nenhum momento, deixou de tratar Dr. Arraes por “excelência”. Diz o Coronel:

“Venho comunicar que V. Excelência está deposto.”

Responde Dr. Arraes:

“O senhor não tem autoridade para me depor. Sou Governador do Estado eleito pelo povo de Pernambuco e somente ele pode me depor. Ou então o senhor quer dizer que estou preso e isso o senhor pode fazer pela força.”

Retruca o Coronel:

“De forma alguma, Excelência. Pelo contrário, lhe daremos todas as garantias cabíveis.”

E aí Dr. Arraes responde-lhe serenamente e de forma profética:

“NÃO PRECISO DE SUAS GARANTIAS. SOU O GOVERNADOR DE PERNAMBUCO E EXERCEREI O MEU MANDATO ATÉ O ULTIMO DIA, ESTEJA ONDE ESTIVER.”

Feito e dito isso, Dr. Arraes encerrou o episódio e retornou ao Palácio.  Este diálogo não necessita explicação, nem exige analista ou cientista político para interpretá-lo. De um lado, o poder da força, da imposição, da tutela, sedimentado em especulações delirantes dos militares sequiosos do poder.

De outro lado, a afirmação democrática de um governante altivo, impávido, destemido e legitimado por uma eleição submetida às regras republicanas e reagindo às demonstrações de força, comandadas pelas corporações obscurantistas, politicamente orientadas por um “udenismo” desesperado diante das sucessivas derrotas eleitorais.

Pouco tempo depois, subiu ao primeiro andar um capitão do exército (vejam como a patente foi baixando), determinando que daquela hora em diante somente permaneceriam no Palácio o Governador e os seus familiares. Os demais teriam um pequeno prazo para deixar o Palácio.

Aí acontece a parte mais constrangedora do episódio: o Governador Miguel Arraes postado em frente do elevador do primeiro andar, despede-se e aperta a mão, um a um, de todos os presentes que foram obrigados a retirar-se do Palácio naquele momento.

Ainda um fato importante deve ser destacado pois, a despeito de ter ocorrido antes de 1964, foi fator determinante para a eclosão da golpe de 1964. Assisti, em novembro de 1963, no Salão das Bandeiras do Palácio do Campo das Princêsas, naquela longa mesa que ainda hoje existe, a assinatura do famoso Acordo do Campo. De um lado da mesa os usineiros e senhores de engenho (hoje denominados plantadores de cana) e do outro lado os camponeses maltrapilhos, com Dr. Arraes sentado à cabeceira da mesa dirigindo os trabalhos.

Esse acordo que completou 50 anos recentemente e, de forma lamentável, sem qualquer registro ou comemoração por iniciativa dos sindicatos e centrais sindicais rurais, foi um marco regulatório nas relações de trabalho no campo, com repercussão no Brasil e cultuado no mundo inteiro pelas instituições trabalhistas.

Dr. Arraes nunca foi perdoado pelos patrões, não pelas razões econômicas que lhes foram favoráveis, mas por terem de sentar à mesma mesa com os trabalhadores, fato sociologicamente inadmissível para eles, que consideravam o evento uma suprema humilhação.

E tanto foi assim que, após a tramitação dos fatos descritos e ocorridos no Palácio no dia 1º de abril, fui conduzido ao Quartel General do Exército com outros companheiros e, recebidos pelo Cel. Bandeira, fomos encaminhados presos para o 7º R. O. em Olinda numa operação de remoção comandada pelo usineiro José Lopes de Siqueira Santos, da Usina Estreliana, com uma metralhadora à tiracolo e dando ordens aos militares do exército.

O incidente reflete verdadeiramente a autoria da inspiração, das manobras e da execução do golpe militar. Pelos antecedentes do aludido usineiro e pela autoridade que ostentava no comando da operação, imaginei que não chegaríamos ao destino previsto e quando fomos enfileirados no Corpo da Guarda daquela unidade militar, raciocinei: “Graças a Deus estamos presos”.

Costumo dizer que sou um privilegiado na medida em que fui distinguido pela oportunidade de testemunhar episódios que registram a marca de um grande patriota e líder político brasileiro. A sua história e grandeza precisam ser conservadas para exemplo das gerações que o sucederem. Estou aqui cumprindo um dever que considero fundamental para esse registro, antes que a “traiçoeira” me arrebate desse convívio.

Sinto ainda necessidade de registrar algumas lições que recebi do Dr. Arraes que marcam a sua personalidade singular. Coordenei, também com muito orgulho, o programa de eletrificação rural nos dois governos de Arraes, depois reconhecido como o maior programa da América Latina. Criticado por seus adversários sob a alegação de que suas iniciativas não eram estruturadoras para o desenvolvimento do Estado e sua população, Dr. Arraes respondia com muita sabedoria: “Não conheço nada mais estruturador para um cidadão do que uma caneca de água limpa para beber e um bico de luz para alumiar a escuridão”.

Por isso mesmo, peço permissão para quebrar o protocolo e fazer uma digressão que talvez desvirtue o sentido deste evento. São episódios pessoais, mas estreitamente ligados a Dr. Arraes:

Sou um velho já meio cansado que nunca amealhou riquezas, nem colecionou comendas. Não guardo rancores, nem alimento ressentimentos. Mais de oitenta anos de vida dura e difícil – sabe Deus como! – alternando temporais e bonanças, mas sempre adorando a vida que, por vezes, é gratificante. Sempre tive lado e costumo dizer que “A Coerência é o Caminho Mais Espinhoso da Política”.

Tive dois grandes Mestres na vida: o meu velho pai Zébatatinha que me ensinou o roteiro da dignidade, da cidadania e do apreço à família e Dr. Miguel Arraes – meu líder político e amigo durante mais de quarenta anos – que traduziu para mim o dever de servir à população com honradez e espírito público.

Desnudo-me, nesta hora, para externar minhas fragilidades e humildemente confesso minhas vaidades e orgulhos. Aí vai o primeiro desses episódios: Por ocasião da morte do meu filho mais velho (como dói enterrar um filho!) recebi uma mensagem que me sensibilizou e me levou às lagrimas. Dizia assim:

"Meu querido Ivan, É com grande tristeza que recebo a notícia do falecimento de José Ivan. Esta é a razão pela qual manifesto a minha presença junto à sua dor e a dos seus. Você é um exemplo, um amigo mais que querido. Quando nosso pai já se foi, a gente escolhe outro. No meu caso, você. SE FOR BEM ACEITO. Com meu abraço afetuoso Lula Arraes.”

Depois de enxugar as lágrimas, respondi-lhe:

“Meu querido Lula: Fiquei um bom tempo sem saber o que lhe responder, o que só agora consigo. ACEITO COM MUITA HONRA. Costumo dizer à família que deixarei para ela apenas um nome honrado. Achei que isso me bastava, mas você arrebentou a carapaça e descobriu minha fragilidade: Sou um vaidoso e fiquei impando de orgulho ao me imaginar complementando (nunca substituindo!) o exemplo de grandeza na vida pública que conheci e dou testemunho. Sou duro na queda, mas confesso que chorei ao ler sua carta. Deus lhe guarde e a toda família Arraes. Grande abraço e minha benção.”

Recentemente, ocorreu o segundo episódio: Após uma dessas atribulações que passei em minha vida, recebi a observação de uma pessoa que conheço desde criança, muito amiga e bastante credenciada para fazer o comentário e que, mesmo sem que eu refira o nome, todos entenderão de quem falo. Em conversa com um amigo comum, essa pessoa afirmou:

“Não adianta. Ivan é tão ranzinza quanto meu avô!”                                                                                                                                                                
Meus caros amigos. Desculpem a quebra do protocolo e da liturgia, mas se realmente eu mereço a honraria quero dizer a todos que muito me orgulho e me envaideço dessa comparação. Posso afirmar, do mesmo modo que meu velho Zébatatinha diria: MESMO RANZINZA, EU SOU UM HOMEM FELIZ !”  
   



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