segunda-feira, 22 de junho de 2015

A BELEZA DA PASSEATA DE CANDEEIROS

 Por conta da minha idade, recebo muita pressão para contar as histórias do meu tempo e, sobretudo, as que testemunhei e das quais fui protagonista. Pouca gente sabe e pondo a modéstia de parte, resolvi extravasar minhas vaidades e manifestar o meu orgulho de ter sido o Coordenador do Programa de Eletrificação Rural no Governo de Miguel Arraes, que depois foi considerado o maior programa de eletrificação rural da América Latina. Essa história e a sua relevância não foi contada para conhecimento do povo de Pernambuco e, pelo jeito, só não é desconhecida, até hoje, pelos pequenos e pobres beneficiários que a tinham como inalcançável. 

Quem é jovem e hoje avista a rede de luzes que ornamenta a zona rural de nosso Estado não pode imaginar a tristeza da escuridão que dominava a paisagem trinta anos atrás. Iluminação elétrica no campo só era possível para os grandes proprietários que tinham condições de bancar, às suas expensas, o elevado custo de uma rede de eletrificação com os indispensáveis postes, transformadores, travessas, isoladores, quilômetros de fios e mão de obra qualificada. Para os pequenos proprietários, era um sonho inatingível!
Em 1986, encerrada a mais bela e emocionante campanha política que Pernambuco assistiu, consagrando um segundo mandato de Governador para Miguel Arraes, em que o mote era: “volta Arraes ao palácio das princesas. vai entrar pela porta que saiu” e o “tô voltando”, permanecemos na sede da campanha, ali naquele casarão da Av. Ruy Barbosa que pertenceu à família Comber, para organizar a transição e as primeiras providências do governador eleito.

Nessa ocasião, fui procurado pelo engenheiro da Celpe (então órgão estatal), conterrâneo e amigo José Luiz Sampaio (hoje, por causa, conhecido como Zé da Luz) que me relatou a existência de um projeto de eletrificação rural concebido por um grupo de jovens engenheiros de que ele fazia parte, liderado por Hélio Lopes, que veio a ser Diretor da Celpe e atualmente é Diretor da Arpe, Emerson Souto e Alberto Pereira e, como é natural, queriam fazer chegar às mãos do Governador Arraes para o seu conhecimento.
De acordo com minha solicitação Zé da Luz levou o Grupo à minha presença levando o projeto que eu não tinha condições de avaliar por falta de conhecimentos técnicos e como à essa altura, já estava escolhido como Secretário de Minas e Energia o Eng. Drummond Xavier, o entreguei em suas mãos para sua avaliação.

Logo no dia seguinte, fui procurado por Drummond que, entusiasmado pela qualidade do projeto, queria um contato urgente com o grupo, e me lembro que chegou a fazer um comentário, dizendo: “O projeto, Ivan, tem princípio, meio e fim”. Era inovador, adotava um sistema denominado de “monofilar”, pois usava apenas um fio para transmissão, que resultava em substancial redução de custos, na medida em que subdimensionava a estrutura necessária para sua implantação, sem perda de sua qualidade técnica.
O Governador Arraes encantou-se com o projeto e cuidou logo de estruturar a execução do projeto em seu governo, para o que, logo de início, nomeou o Engenheiro Hélio Lopes para a Superintendência de Eletrificação Rural da CELPE. Abro aqui um parêntese para lembrar que, entre o segundo e o terceiro governo Arraes, houve uma tentativa de desqualificar o processo adotado, sob o pretexto de que não era seguro e poderia ocasionar prejuízos, sustentado em discursos até por secretários de Estado. A tentativa foi frustrada e o Governador Joaquim Francisco prosseguiu com o programa.

Não pensem que foi fácil. À medida em que se iniciava a execução do programa, com elaboração dos pequenos projetos das comunidades, orçamentação, busca de recursos, verificação dos critérios estabelecidos pelo Governador atendendo à economicidade, concentração de unidades atendidas para redução do custo médio, possibilidade de utilização da energia para melhoria da condição de vida dos beneficiários, confortos que possibilitassem a fixação no campo, começou o alvoroço das comunidades por vislumbrarem a possibilidade de conseguir o benefício.
Foi um trabalho duro, mas gratificante. Trabalhávamos com quatro planilhas que iam desde a solicitação do benefício à conclusão da obra e o monitoramento constante. Todos os meses nos reuníamos na Diretoria da Celpe para avaliação dos resultados e necessárias correções que, por vezes, se impunham. Já era, na verdade, o monitoramento hoje adotado na gestão do Estado de Pernambuco, com muito êxito. Lembro, com muito respeito, todos os servidores da empresa que trabalharam e muito pelo programa e, sem desdouro dos demais, recordo com respeito os colegas do grupo de jovens engenheiros e os Presidentes Dilton da Conti e Fábio Alves.

E foi inevitável, quando os primeiros e ainda modestos projetos foram instalados nas comunidades a grande demanda ainda represada explodiu. O alvoroço foi grande e, no dizer do saudoso Lívio Valença, foi “como soltar uma onça no chiqueiro dos bodes”. Nas pequenas comunidades, os sítios mais afastados, os sonhos mais reprimidos foram despertados como realidade.  Começa a ser concreto um quimérico motor para aliviar o esforço na ralação da mandioca nas casas de farinha, uma pequena moto-bomba para ajudar na aguação das plantas e a luz elétrica clareando o negrume das noites.   
Aí os inconformados adversários começaram a perceber a grandeza do projeto e o efeito devastador da mobilização das comunidades carentes da zona rural, logo estendido aos programas de baixa renda nas zonas urbanas, favorecidos por um inimaginável benefício que nunca pensaram um dia conseguir. E a campanha foi terrível e solerte. Não faltaram os economistas de ocasião para acusarem os benefícios do Governo Arraes como desestruturadores e que nada acrescentavam para o desenvolvimento econômico do Estado e, por consequência, para a sua população.

Em resposta a esses ataques, Arraes fez uma ponderação precisa e fulminante que nunca esqueci: “não conheço nada mais estruturador para um cidadão que uma caneca de água limpa para beber e um bico de luz para alumiar a escuridão”, que explica o seu pensamento, e não tenham dúvidas, que  a eletrificação rural mudou a face do campo para bem melhor.
Foi uma marca de governo inconfundível e os humildes beneficiários nunca esqueceram. Ainda hoje, quase trinta anos depois, sou surpreendido por muitas pessoas dos grotões do sertão até à mata, cobrando-me a lembrança dos nossos contatos, desde a solicitação do benefício até a sua entrega com as festas que promoviam quando da inauguração dos projetos em suas comunidades. Pensem numa alegria contagiante que, pelo hábito, terminava num verdadeiro e espontâneo ritual em todos os dias de inaugurações da eletrificação. Era uma coisa linda e valia a pena assistir.

Invariavelmente, a comunidade promovia uma passeata chamada de “adeus candeeiro!”. Caminhada circulando por toda a comunidade, as pessoas carregando na cabeça os fio-fós apagados que eram até então o único meio utilizado para clarear o mundo, a banda de pífanos puxando o cortejo, a cachaça e o vinho de jurubeba correndo soltos, a galinha gorda guisada com farofa para tira-gosto e, ainda mais, a alegria de felicidade escancarada em todos os moradores do sítio, coroada pela dança no final da festa.
Alguns, já exibindo orgulhosamente na sala da sua casinha o rádio adquirido a prestações na loja da cidade, deixando de lado o “radinho” de pilha que sustentava, até então, a comunicação da comunidade com o resto do mundo. Outros, mais afortunados juntavam a família e conseguiam colocar uma geladeirazinha na bodega para garantir uma cerveja gelada. Alguns, radiantes, acendendo e apagando as lâmpadas de casa para comprovarem a sua efetiva existência. Outros mostrando, encantados, o motor elétrico já instalado no “caititu” da casa de farinha que, daí em diante, livrava as pessoas do penoso trabalho de acionar o volante manual do ralador de mandioca.

Só quem assistiu e conhece a dureza da vida no campo pode entender a felicidade de uma velha senhora, matriarca de sua família, sentada na salinha da casa de taipa e chão batido, admirando a luz acesa e que, advertida pelo filho que já era tarde e deveria recolher-se para descansar do dia muito agitado, respondeu com toda a veemência: “me deixem aqui, que era só que faltava eu ir dormir agora. vou passar a noite admirando essa belezura de uma lâmpada acesa que nunca pensei que um dia ia ver na minha casa 
Vejam quanta coisa bonita e quanta melhoria de vida a eletrificação rural trouxe para a população humilde do nosso Estado, a ponto de no final do governo Arraes em 1998, Pernambuco ter 83 % de suas comunidades rurais eletrificadas. Orgulho-me, e entendo com justas razões, de ter participado de um programa tão valioso para o nosso povo junto com um grupo de técnicos excepcionais, sob o comando de Miguel Arraes, maior líder político do nosso Estado, e que deixou uma marca definitiva de uma visão humanista capaz de entender a alma de nossa gente e, por isso mesmo, merecedor da gratidão de sua população mais carente e quase sempre injustiçada.

Centenas de Comunidades nunca haviam recebido qualquer benefício ou atenção dos governos e a única ação do Poder Público conhecida pelos moradores desses grotões era a atuação da polícia para reprimir uma cachaça mais exagerada nas bodegas em dias de feira. Aí eram certas a prisão do temível infrator e a intervenção do chefe político para soltá-lo e mantê-lo sob sua dependência pelo favor prestado. O Programa de Eletrificação Rural e o Chapéu de Palha foram as marcas determinantes e refletem muito bem o foco de um governante voltado para as camadas mais necessitadas do Estado. Esses programas representaram uma libertação para o homem do campo e lhes garantiram o conhecimento de uma coisa chamada CIDADANIA. Nada como uma caneca de água limpa e um bico de luz!

sábado, 20 de junho de 2015

AS INFAMES PRIORIDADES NO SERVIÇO PÚBLICO

Faz pouco tempo, fiquei impressionado com uma excelente reportagem de Magno Martins sobre as sete cidades dos sete Estados do Nordeste que deram as maiores votações a Presidente Dilma. O jornalista levantou e realça uma acentuada relação entre a votação, a população, a incidência de beneficiários do Bolsa-Família e o analfabetismo. Nada contra o programa que tirou milhões de brasileiros da miséria absoluta há mais de dez anos, mas estarrece a constatação de que mais de 60% dos seus beneficiários permanece ainda sem qualquer qualificação profissional por faltar-lhes o elementar requisito da alfabetização.

Esse contingente incorpora-se aos vinte milhões de analfabetos totais, sem contar os funcionais, ainda vergonhosamente existentes no Brasil. Evidente que permanecerão por toda vida na infamante dependência da ausência de profissão qualificada, por faltar-lhes a mais  elementar capacidade do ler e do escrever. Fala-se muito em educação, sucedem-se os seminários, debates e conferências sobre o assunto sem discutirem uma coisa básica que no dizer de Cristovam Buarque chama-se PRIORIDADE. Desvia-se o foco da questão e condena-se a existência da Bolsa Família, sem analisar e reparar as condições que condicionam a sua existência. Durante todo esse tempo nada foi feito para, pelo menos, alfabetizar os brasileiros que só aprenderam na vida a plantar milho e feijão enquanto esperam que Deus dê chuva para garantir a safra e isso se conseguirem um palmo de terra pra plantar. 
O Conselheiro Acácio diria que TUDO COMEÇA DO COMEÇO, mas como resolver o problema da educação dessa nação-continente sem cuidar do mais elementar e primário que é a ALFABETIZAÇÃO ? Os meios de divulgação estão cheios de siglas PROUNI, FIEPES, PRONATEC, Escolas de Referência, Programas de Intercâmbio, Novas Faculdades e Universidades, Cursos de Mestrados e Doutorados, Bolsas no Exterior, pelo que a Nação está inexoravelmente condenada a ser formada exclusivamente por DOUTORES e por ANALFABETOS ?

Para que não se imagine qualquer ranço eleitoral, confesso o meu estarrecimento quando, ao dirigir a área de mediação de conflitos no governo estadual, fui surpreendido pela máxima reivindicação de marisqueiras pertencentes à uma Colônia de Pescadores em plena Região Metropolitana do Recife, nos seguintes termos: “Doutor, se a gente soubesse ler e escrever aprendia a consertar pranchas e barcos de resina e ia ganhar dinheiro de inverno a verão”.
E mais, em qualquer análise de prioridades na questão da educação, o mais sensato, lógico e elementar não seria a erradicação do analfabetismo, seguida da democratização da educação infantil mediante a universalização das creches no país que também amenizariam a tragédia das trabalhadoras pobres que não têm onde confiar a guarda dos seus filhos e poderem trabalhar tranquilas ?

Do mesmo jeito, a discussão travada em torno do caso José Estelita levou-me à uma reflexão sobre o desvio de focos das grandes questões nacionais. Talvez o subjetivismo de alguma beleza possa ainda seduzir para uma aprovação desse projeto. Afinal, tem gosto para tudo, mas não me encanta a verticalidade dos espigões. Não é novidade para ninguém que as mais belas e atrativas para o encanto do mundo são exatamente as cidades que não permitiram essa prática perniciosa, tendo como melhor exemplo Paris.
Na verdade, percebo que o grau de radicalização das posições a respeito do assunto leva a um exagero extremado, pouco explicável pelo bom senso, sobretudo por desviarem o verdadeiro foco da questão. Lí de um arquiteto, nosso amigo Alexandre Wanderley garoto que vi nascer em Garanhuns, que Recife já fez a sua opção de HELLRECIFE com a lamentável decisão do adensamento exagerado e sem planejamento adequado. Verifico, também, que nessa acirrada discussão, existe um claro desvio da verdadeira questão que está destruindo esta  cidade, além de que está em jogo na verdade uma clara competição de empresários imobiliários.

Porque as instituições dos arquitetos, urbanistas, engenheiros, sociólogos, antropólogos, ambientalistas, etc. não priorizam seus esforços e vão para as ruas e para os fóruns governamentais, reclamar das barbaridades cometidas no planejamento da cidade e reivindicar das chamadas autoridades responsáveis uma RADICAL MODIFICAÇÃO das normas que regem a ocupação do solo, o seu Plano Diretor, o Plano Viário e de Mobilidade protegendo TODA CIDADE, e não apenas o Cais José Estelita ?
Porque não se responsabilizam os responsáveis (ou irresponsáveis?) pelos projetos, concepção e execução das infames intervenções do Poder Público que resultaram nos verdadeiros atentados que se praticam no Recife, ao arrepio de todas as regras do bom senso ? Porque o desvio de foco em embates pontuais e localizados, quando a cidade está sendo destruída, como um todo, por essa orgia predatória devida à falta de uma regulamentação normativa técnica, decente e humanizadora ?

A degradação da cidade e do seu entorno é desoladora e a lista das desastrosas obras de engenharia e de urbanismo implantadas é estarrecedora e tão numerosa que não caberia neste texto! O estrago já é muito grande, mas ainda é tempo de salvar muita coisa, Basta uma mobilização bem orientada neste sentido, um comprometimento das entidades ligadas à atividade que daria o embasamento técnico e, lógico, uma decisão política! Seria, pelo menos, um auto de penitência dos engenheiros, projetistas e urbanistas pelas aberrações praticadas impunemente nas suas intervenções na cidade.
Só como exemplo mais evidente, porque não se buscam os autores e responsaveis pela criação e implantação de um investimento como a “Via Mangue” que já consumiu cerca de MEIO BILHÃO DE REAIS, e o seu custo não espanta, claro, pois na realidade  resume-se à um imenso viaduto com 4,5 km, todo assentado em pilotis dentro do mangue, com um dano ambiental fantástico, somente comparável com as extravagâncias dos emirados que constroem fantásticos arranha-céus no meio do deserto, como se isso fosse indício de progresso e não um  deslumbramento de imbecis ?

Mas o pior foi a “descoberta (?)”, na hora de inaugurar a excelsa obra com todas as pompas e circunstâncias e a presença da Presidenta, de que a via expressa tinha ida, mas não tinha volta e, conforme anúncio do Sr. Prefeito, ainda exige um investimento de mais cem milhões de reais para sua conclusão. E tem mais, a via é absolutamente interditada ao uso de transportes coletivos, pedestres e não dispõe, sequer, de ciclovias. Na contra mão das medidas reconhecidas e adotadas por todas as autoridades no mundo, privilegiam-se nesta cidade os transportes unitários em prejuízo dos transportes coletivos.
Insisto, por fim, que desvia-se o foco das questões para os acessórios e para os seus efeitos, sem qualquer discussão ou simples referências as causas que estão permitindo a existência de um longo e permanente processo de destruição de uma cidade tão linda quanto o Recife. Estão aí se sucedendo centenas de “Estelitas” sem uma simples palavra de protesto contra uma legislação permissiva e complacente, verdadeira responsável por todas as “ESTELITAS DA VIDA”!