Atualmente, poucos estudantes precisam se
deslocar para Recife, a fim de cursar os cursos superiores uma vez que a
interiorização de faculdades facilitou e muito a formação do 3º grau em muitos
polos de ensino no interior do Estado.
Naquela época não existia, sequer, o segundo
grau o que me obrigou, tão logo terminei o curso ginasial, ir estudar no
Recife, para minha felicidade no Colégio Osvaldo Cruz, que me dá muito orgulho.
Para hospedagem não tinha outra solução:
alguns raros internatos que ainda restavam ou as tradicionais pensões,
sendo a maioria delas instaladas em casas de família que necessitavam melhorar
suas rendas.
Essa circunstância me obriga, desde logo, a
homenagear as incansáveis mães de família que, como heroínas, assumiam o
terrível encargo de dirigir e manter, além de suas famílias, uma horda
indisciplinada e moleca de estudantes, algumas vezes em períodos difíceis como
foram os da guerra, em que até a comida escasseou. A sorte é que existia em
todas as pensões um pacto, não expresso e formal, de respeitar-se os horários
de estudo e de repouso. Eram sagrados!
Imaginem a trabalheira terrível a partir de
cinco horas da manhã até nove, dez horas da noite, para dar contas das tarefas,
sem as benesses que a tecnologia hoje proporciona. Fogão à lenha ou carvão, toda comida era
ralada ou passada nas antigas “máquinas de moer” e todo suco era espremido à
mão, por falta de um simples liquidificador que surgiu muito depois como
maravilha das coisas modernas. As geladeiras eram aparatos raros ainda não
democratizados, por conta do custo e pela irregularidade do fornecimento de energia
elétrica e, muito menos, batedeiras e lavadoras de pratos.
Os gêneros não perecíveis eram estocados em
grandes despensas e as carnes, verduras, alguns legumes e frutas eram comprados
quase que diariamente aos vendedores ambulantes de todos tipo de gêneros, que
percorriam as ruas da cidade e, nessa relação, se estabeleciam as freguesias
habituais. Dependia-se muito das pequenas mercearias e quitandas espalhadas
pela cidade.
Honra, portanto, às queridas donas de pensão,
heroínas do quotidiano que se matavam no trabalho para ajudar no sustento da
família, enquanto alguns “chefes” (ainda
bem que raros) se regalavam em cadeiras de balanço e espreguiçadeiras.
Minha primeira pensão, a começar de janeiro
de 1943, era localizada na Avenida João de Barros, naquele sobrado onde hoje abriga
a Faculdade de Direito do Professor Pinto Ferreira, na confluência com a Rua
Visconde de Suassuna. A sua localização era boa dada a sua proximidade com o
Colégio na Rua D. Bosco, bem em frente daquele casarão lindo que abriga a Rádio
Patrulha e me permitia ir à pé sem gastar transporte.
Fica difícil imaginar: os fundos das casas da
João de Barros hoje cortadas pelas Ruas Tabira, Leopoldo Lins eram uma imensa
campina, sem uma construção sequer, e o meu caminho para alcançar o colégio era
uma vereda me levava diretamente ao Parque Amorim (chamado então Parque do
Peixe-Boi) e daí então era só contornar o Colégio Americano Batista para alcançar
a Rua D. Bosco.
A dona da pensão era Dona Balbina, tia do
Padre Joel Moraes que trabalhou na Diocese de Garanhuns e foi professor no
Diocesano, mãe de Dr. Orlando Moraes que foi depois Conselheiro do Tribunal de
Contas do Estado. Tenho poucas lembranças dos companheiro de então, mas além de mim e meu
irmão Ivaldo, um foi Cleodon Granja que se formou em medicina junto com Ivaldo
e foi exercê-la em Palmares, sua terra natal.
Tempos difíceis de guerra, alimentação
difícil, orçamento apertado, mas não tinha outro jeito e como sempre
estudávamos até tarde, quem nos salvava era a interferência do cozinheiro, um
negro homossexual maravilhoso chamado Virgílio que, escondido de D. Balbina,
fazia uns lanchinhos e levava pra gente e, acreditem se quiser, sem querer nada em troca. A pensão custava duzentos
mil réis, o colégio oitenta mil réis e o caro era D. Maria lavadeira que
morando na Mustardinha, toda semana levava e trazia a roupa pronta, sem
esquecer os costumes de então que obrigavam paletó e os tecidos da época
exigiam serem engomados. É incrível, mas para provar tenho uma fotografia da
turma no encerramento do 2º grau, no dia 12 de dezembro de 1945, em que todos
estão de paletó e em sua maioria de gravata. Não havia essa história de camisa
esportiva!
Na crônica “Tempos de Guerra”, falei na
mudança de costumes provocada pela guerra e bases americanas em Recife e Natal.
Como não existia fábrica da Souza Cruz aqui, éramos obrigados a recorrer a duas
pequenas fábricas de cigarro nativas e que atendiam à nossa mesada. O consumo
era de um cigarro chamado “Atraentes”, em modesto rótulo vermelho, fabricado
pela Caxias, que custava apenas oitocentos réis. A alternativa eram os cigarros
americanos, logo contrabandeados, que chegavam aos montões para abastecer os
“marines”, mas custavam cinco mil réis, absolutamente inviável para nosso
minguado orçamento.
Lembro que na ocasião, houve um incêndio em
um navio no Porto e ficávamos na calçada da pensão assistindo a passagem de
carroças e mais carroças com os salvados de incêndio que o povo tratou de
arrebatar e vender, por qualquer preço, cigarros, leites, queijos e muitos
outros mantimentos destinados às bases americanas. A farra foi geral e pudemos
passar bom tempo consumindo Lucky Stryke, Chesterfield, Pall Mall, Camel, Malboro,
etc. a baixo preço.
A seguir, quase no final da Avenida Conde da
Boa Vista, ainda motivado pela facilidade de acesso ao colégio, fomos morar na
pensão de Seu Inácio e Dona Maria, um casal já idoso, e o nosso alojamento era
em uma água-furtada em quartos de parede de tabique. Cabia pouca gente e lembro
apenas alguns companheiros: Aílton Ferreira Costa, grande amigo ainda hoje sustentando
a mesma teimosia que eu para permanecer vivo, e dois estudantes de engenharia
Humberto Baltar e Geraldo Muniz de quem não tenho notícias.
Daí saímos para a Rua das Ninfas, esquina com
a Rua Manoel Borba, a pensão de Seu Lucas e Dona Maria. Quartos ocupando todo
primeiro andar também de parede de tabique, e tivemos a companhia de muitos
amigos como Célio Melo e seu irmão Lula, Genival Cesar, todos de Palmares e
Clarindo Medeiros nosso companheiro e amigo desde o Diocesano e irmão de
Benvindo Medeiros que muitos conheceram.
Aí vale o registro das presepadas de Clarindo
que gostava de trajar bem, evidente elegância, sempre demonstrando uma
seriedade pouco comum nos estudantes de qualquer época, mas extremamente
moleque. Ocupava um pequeno quarto sozinho e, um dia, altas horas da noite, se
escutou na escada um terrível grito de pavor que acordou toda a pensão. Pulou
todo o mundo da cama, do jeito que estavam, de cuecas, de pijamas e até D.
Maria trombou com a gente de camisola, no meio da escada.
Não foi identificada a razão do grito, nem
seu autor e no dia seguinte estava Clarindo no café da manhã reclamando de D.
Maria a falta de sossego e repouso em sua pensão que o estava deixando
inclinado a mudar de pensão. E D. Maria se desculpando a “Seu Clarindo” como o
tratava com todo o respeito. As invectivas eram fortes: canalhice, desrespeito,
absurdos, etc. Somente tempos depois é que descobrimos que o autor da presepada
foi Clarindo.
Aí chegou a vez da pensão de Dona Carmela, na
rua Dom Bosco/esquina com a Rua Henrique Dias e a casa ainda está lá, a um quarteirão do Colégio, e ocupávamos o melhor
quarto da casa com três janelas de frente para a D. Bosco e ocupado por mim ,
Ivaldo e imaginem quem: o amigo Clarindo.
Vejam a trabalheira de D. Carmela, com um
bando de filhos e quase sempre grávida, gerindo uma pensão com 45 (quarenta e
cinco!) estudantes, sempre bem humorada e com uma paciência enorme no trato dos
pensionistas. Os banheiros do primeiro andar ficava em longo alpendre, no meio
dos quartos. Ocorre que na bela casa em frente, aonde hoje é uma loja do Super Mercado
Extra , residia o respeitado Professor José Pires, casado com uma Lins e Silva,
com muitas filhas, que obrigava a constantes reclamações do Professor a D.
Carmela, dizendo ao telefone: “Carmela, mande esse povo se vestir” pois saiam de
cuecas dos quartos em direção do banheiro, desfilando pelo alpendre.
Hoje, tenho a alegria de ser vizinho de porta
de elevador há mais de quarenta anos, de uma das filhas do Professor, a querida
Duse e o seu filho é como um sobrinho para mim. Era tanta gente que morava lá
que lembro muito poucos. Não poderia esquecer Erasto, filho de Urbano Vitalino
e Lucilo Maranhão titular de um excelente centro de exames em Recife,
atualmente dirigido por uma filha sua.
Daí migrei para a Rua São Borja nº 232,
pensão de Dona Nina e Seu Osvaldo que tinham os filhos Mauro e Carmita e mais
um terceiro que não lembro o nome. Filha de italianos, Sr. Lauria, que a
visitava sempre, era expert em cozinha e por conta disso começamos a passar
melhor em matéria de comida.
No seu tempo Nestor, o Cinema Politeama ainda
funcionava ? Pergunto porque era um dos poucos lazeres disponíveis para nós.
Saíamos da pensão do jeito que estávamos, de chinelo e em manga de camisa para
ir ao chamado “Polipulga”. Lembro até o porteiro do cinema, um senhor de meia
idade chamado Tibúrcio que se contentava, às vezes, com um retumbante “Boa
Noite, seu Tibúrcio” como ingresso, quando sabia que estávamos com a mesada
esgotada.
Na casa vizinha à nossa, residia o Professor
Brito Alves, eminente jurista e pai de Roque, Toinho, Sebastião que morando no
primeiro andar confinavam-se com os nossos no mesmo andar. O intercâmbio era
inevitável para acompanhar as notícias de guerra pelo rádio e a luta pela
redemocratização do país que eclodiu com mais força no dia 3 de março de 1945
(completou há pouco 70 anos) resultando na morte do estudante Demócrito de
Souza Filho na sacada do Diário de Pernambuco, vitimado pelas balas da polícia
do Estado Novo.
Tarde da noite, quando a fome apertava ao fim
de um longo estudo, o jeito era ir a pés até à confluência da Rua do Hospício
com a Praça Maciel Pinheiro apanhar um sanduiche na Leiteria Vitória que já
existia naquela época. Vale observar a fonte daquela praça, ainda hoje
existente (graças a Deus, não conseguiram destruir ainda!) que considero uma
das mais belas fontes que conheci até hoje na minha vida e nas minhas andanças.
Lembro ainda que a Rua Barão de São Borja,
nessa época de insuportável anti- semitismo, era o centro da colônia israelita
da cidade que se espraiava por toda a redondeza e pelo menos 30% de minha turma
no Colégio, era composta por queridos companheiros dessa origem. Desconfio que
o Osvaldo Cruz pela sua liberalidade, era o preferido da colônia, desde que não
existia ainda o Colégio Israelita do Recife.
Tempos
difíceis, mas saudosos!
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