sábado, 28 de março de 2015

TEMPOS DE GUERRA

Lembrando meu tempo de estudante no Recife, senti-me deliciado pela evocação de algumas circunstâncias que quero compartilhar. Ousadamente, em 1943, meus pais me mandaram para estudar na Capital , um ainda fedelho que acabara de completar 15 anos, com a obrigação de morar numa pensão, quarto de paredes de tabique, todo mês levando o colchão de palha para o quintal a fim de espantar os percevejos com bombadas de “flit” e comer a comida que lhe era oferecida e aceita, porque não tinha outra. Boa ou ruim era a única disponível. Minha única segurança era a companhia de meu irmão Ivaldo, um pouco mais velho, ambos menos preparados do que os adolescentes de hoje que se imaginam, com justas razões, donos do mundo.

Era exigência ir para Recife - difícil entender nos dias de hoje com a expansão do ensino superior - pelo simples fato de não existirem no interior os cursos do SEGUNDO grau, mesmo em Garanhuns, talvez o maior centro educacional do interior do Nordeste já naquela época, mediante a consolidação e pujança das três centenárias escolas: Diocesano, Santa Sofia e Quinze de Novembro.
Matriculei-me no importante Colégio Osvaldo Cruz, dirigido pelo digno Prof. Aluísio Araujo  – uma das pessoas decentes que serviram para a minha formação – cujo centenário de nascimento foi à pouco tempo comemorado com a edição de um livro em que constam os nomes de Ivan e Ivaldo Rodrigues como ex-alunos, com muito orgulho para nós.

Todos seus professores eram também universitários e sempre divulgo com honra ter sido aluno de Newton Maia, Moacir Albuquerque, José Lourenço de Lima, Amaro Quintas, Marcionilo Lins, Aníbal Fernandes, Lucilo Varejão, Waldemar de Oliveira, Andrade Lima Filho, os irmãos Hilton e Hoel Sette. Querem mais ? Registro com alegria que fui contemporâneo, no Colégio, de Ariano Suassuna, Ricardo Ferreira de Carvalho, Ricardito Brennand, Paulo Loureiro e muito outros que enobrecem com sua inteligência, vivos ou mortos, o panorama nacional e internacional. Tenho ainda comigo uma foto tirada em 12 de dezembro de 1945, com a turma e alguns professores, no encerramento do segundo grau do Colégio.
Foram tempos difíceis, de 1943/1945, com os horrores da segunda guerra mundial que abalou a vida, os costumes e a cultura do mundo inteiro, incluindo o Brasil. Naquele tempo, a informação resumia-se ao rádio e aos jornais no cinema (pela própria natureza sempre atrasados). Não existiam ferrovias e/ou rodovias que permitissem transporte para o Sul, pelo que, afora a incipiente aviação com suas tecnologias voltadas para a produção guerreira, todo o transporte de pessoas e mercadorias para o Sul e vice-versa, dependia da via marítima.

Nossa região produzia poucos manufaturados e precisava, por conseguinte, desse transporte para abastecimento regular de suas demandas. Desde o combustível até os cigarros Souza Cruz que não eram ainda fabricados no Recife. Ficou quase tudo submetido ao racionamento, a partir do momento em que os submarinos alemães começaram a afundar os navios brasileiros e o movimento dos navios passou a depender da formação de comboios protegidos por navios e guerra que, pela dificuldade que custava, só transportavam gêneros e materiais necessários ao esforço de guerra.
Gasolina fornecida somente em ínfima quantidade e somente atendida mediante os tíquetes de combustível. Como inevitável, surge o contrabando e uma inventiva pioneira da população! Com a minha posterior experiência no ramo automobilista (trabalhei um bocado de tempo na Mercedes Benz) sempre me diverti muito anos depois da guerra, com a grande novidade dos combustíveis alternativos como o etanol (nome inventado para o álcool como novidade para iludir os inocentes consumidores) e os motores atualmente designados de “flex”. Essa tecnologia foi criada pelos brasileiros durante a dificuldade dos tempos de guerra.

Lembro que em uma viagem, nesse tempo, em que voltava de Recife para Garanhuns, num velho jipe e ameaçado pela falta de gasolina e a inexistência de álcool nos postos, não tive dúvidas: na passagem pela cidade de Gravatá simplesmente parei numa farmácia e comprei alguns litros de álcool, despejei no tanque e garanti minha viagem...
Chegou a faltar comida e, se nas casas de família havia dificuldade, imaginem nas pensões. Para que tenham ideia, passei muitos anos sem poder avistar o que chamam de “macarronada a cavalo”, ou seja, com um ovo estrelado em banha coroando uma macarronada sem outro adereço. Experimentem essa dieta por algum tempo e verifiquem se minha intolerância tinha ou não razão.

Grande novidade e transformações culturais resultaram da instalação de uma base militar americana no Recife, como trampolim para o deslocamento de tropas, víveres e armamentos para as forças aliadas que se acumulavam em outras bases na África para a invasão da Europa. Com toda urgência, algumas novidades:   ampliação e criação de novas instalações militares no aeroporto; asfaltamento de uma faixa de rolamento da Avenida Boa Viagem da praça até os limites de um hospital de emergência da Base Americana, hoje Hospital da Aeronáutica.
Milhares de “marines” transitando ou instalados aqui, consumindo e gastando os seus dólares em todos setores de atividade notadamente em serviços, em que se inclue o  esplendor da bairro do Recife – hoje chamado Recife Velho -  abrigando o baixo meretrício (existe o alto ?). O movimento era intenso e toda noite era como dia de festa. Era comum escutar o fraseado dos aprendizes de intérpretes ( alô boy, veri uel, êi mister, iumen sir ? ) logo formados para cicerones e, com isso, garantir o que hoje denomina-se “geração de emprego e formação de renda”. As buates proliferaram e a concorrência tanto quanto a afluência, eram enormes! As noites no bairro do Recife eram como uma festa de Natal diária!

Mas, outra grande novidade surgiu. Ali na esquina da Av. Guararapes com a Rua do Sol, que  hoje  sedia os Correios, os americanos construíram uma daquelas instalações de emergência, igual ao hospital, utilizadas em função da urgência que se fazia necessária diante das exigências da guerra. Em atitude inteligente para levantar a moral de suas tropas no exterior, os americanos instalaram nessa construção o chamado “USOSHOW” destinado à diversão dos seus militares, para o que traziam constantemente os grandes artistas e orquestras americanas da época. Despertava uma ciumada danada nos rapazes brasileiros a quem não era permitido frequentar, privilégio somente reservado às trêfegas mocinhas brasileiras que ficavam alvoroçadas com a participação e deslumbramento nos frequentes eventos.
À nós brasileiros, restava apenas o direito de sentar ali no cais – lembrem que nessa época não existia a Ponte Duarte Coelho – e ficar até tarde escutando o som maravilhoso das célebres “bands”. Pra matar todos de inveja, tive assim o encanto e o privilégio de ouvir, ao vivo, a apresentação de algumas delas, mundialmente famosas, como Tommy Dorsey (escutem no You Tube os seus solos de trombone em “I’m Getting Sentimental Over You” e “Smoke Gets In Your Eyes”), Benny Goodman num solo de clarineta em “Moonglow”, e um menos conhecido Harry James em duas primorosas apresentações (vejam a interpretação de “Jealousie” num arranjo que mescla o ritmo original de tango com o blue e o mais fantástico solo de trompete que já ouvi, num clássico composto para violinos de difícil execução, “Hora Stacatto”). Atenção Lúcia Lessa, quero sua opinião depois!

Para nosso pesar, Glenn Miller desapareceu num vôo entre a Inglaterra e a França e nunca apareceu por aqui para nos deleitar ao vivo com a sua fantástica interpretação de “Moonlight Serenade”,  e o som maravilhoso que obteve com a clássica harmonia de quatro saxofones e uma clarineta ainda hoje imitada no mundo inteiro.
O comentário está ficando muito extenso, a memória está acelerada e logo voltarei ao assunto em outras postagens.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário é construtivo.