Na década de 1980, à cerca de 30 anos, fui Presidente da CILPE,
empresa de produção de derivados do leite de forte atuação nos meios de
produção do Estado. Ali na Rua Dr. José Mariano, na Ilha do Leite, funcionava a
usina de pasteurização do leite em que pontificavam alguns dos mais reputados
técnicos brasileiros de laticínios, tais como Antônio Coelho, Salomão Kirzner,
Clarisvaldo Germano, Chico Carneiro da Cunha e outros não menos notáveis.
Na época, já funcionava e muito bem o Serviço de Inspeção
Federal (SIF), subordinado como hoje ao Ministério da Agricultura e que, para
tanto, mantinha um laboratório para inspeção dos produtos dentro das
instalações da própria CILPE.
Registro, como reconhecimento, que o SIF mantinha um corpo
técnico de alto nível científico, sério, competente e diligente e, por vezes,
exigente a ponto de incomodar nosso pessoal. Tal circunstância era sempre
motivo de preocupação no sentido de manter um bom relacionamento entre o SIF e
o nosso pessoal. Faço essa referência de modo pessoal, pois algumas peças isoladas
de qualquer órgão não contaminam a credibilidade da instituição, como ora
procura-se insinuar contra os órgãos de controle de qualidade de produtos
alimentícios.
Conheci, a partir daí, o rigor da fiscalização de produtos
alimentícios de origem animal e as exigências previstas pelas empresas
multinacionais quando do recebimento dos laticínios fornecidos, inclusive
leite-em-pó. Entendi que nenhuma corrupção vence os instrumentos de
fiscalização e auditoria de empresas importadoras (de qualquer origem) que
chegam ao requinte de enviar equipes de auditoria especializada para vistoria
nos próprios estabelecimentos produtores de origem.
Um dia ocorreu um incidente que quase joga fora essa boa
relação. Já naquela ocasião o trânsito do cais José Mariano era terrível e a
CILPE possuía outra via de acesso através da Rua da Glória. Para facilitar a
mobilidade dos veículos de serviço, desde as dezenas de caminhões-tanque que
traziam o chamado leite cru coletado e outros tantos caminhões de distribuição
de leite que durante todo o dia faziam a distribuição do leite envazado por
todos os bairros da cidade e algumas da região metropolitana (bons tempos em
que dispúnhamos de produtos mais saudáveis), determinei que a entrada da José
Mariano seria reservada, exclusivamente, aos veículos de transporte do produto.
Quanto aos demais, em sua maioria veículos pequenos e de transporte pessoal
inclusive do Presidente, se obrigariam a usar a Rua da Glória.
Façam ideia do rolo criado por essa determinação. O pessoal
do laboratório do DIPOA reagiu a determinação, entendendo que não poderiam
obrigar-se – como todos os demais – a cumprir a determinação. No dia seguinte,
ao chegar cedinho na usina encontrei a
entrada da José Mariano bloqueada pelos automóveis dos servidores do
laboratório que se sentiram restringidos pela determinação da presidência da
CILPE.
Tomei a providência que me cabia: telefonei para o Delegado
do Ministério da Agricultura de então, nosso velho amigo Simões – já falecido –
dei-lhe conhecimento do ocorrido e comuniquei que se o seu pessoal não
retirasse o bloqueio praticado no acesso da nossa empresa dentro de 15 minutos,
eu comandaria pessoalmente os nossos peões para arrastar os veículos do seu
pessoal, contanto que a direção da CILPE não fosse desrespeitada em sua
determinação, já que o poder de fiscalização do órgão não alcançava medidas internas
administrativas. E mandei chamar o chefe do laboratório para comunicar-lhe minha
decisão.
A conversa não foi tão difícil como esperava. O Chefe do
Laboratório, profissional sério mas equivocado, cometeu o descuido de alegar em
sua primeira justificação que “Nós
somos autoridade federal e temos direito de entrar por qualquer dependência da
empresa (sic)”.
Aproveitei a oportunidade e, usando este meu jeito sempre jocoso e bem-humorado,
retruquei-lhe na hora: “Por
isso não, amigo, eu também sou autoridade na condição de neto de soldado de
polícia e nunca invoquei essa autoridade pra ninguém (sic)” e confirmei para ele o que já
decidira e comunicado a seu chefe. Felizmente, percebeu que pisava em areia
movediça, o bom senso funcionou e ele mandou retirar os carros da entrada!
Doutra feita, como Superintendente Administrativo da COSINOR
que coordenava o Setor Jurídico da empresa, tivemos que enfrentar uma questão
jurídica grave, promovida por uma multi-nacional que, recusando liminarmente o
pagamento da encomenda que entregamos para as Centrais Elétricas de Rondônia,
intentou uma ação de indenização, em que alegava defeitos de fabricação em seis
tanques fixos enormes para depósito de líquidos, louvado em laudo do IPT de São
Paulo, tido como o maior instituto tecnológico do país.
Para fazer essa defesa, tive que aliar-me ao bom corpo técnico
da COSINOR e aprender tudo que existia em torno de normas técnicas na regulação
brasileira e mundial sobre construção, fabricação de produtos, resistência de
materiais, testes de componentes, insumos e operação de equipamentos e as
normas técnicas internacionais em vigência. Aprendi, desde logo, a extrema
complexidade do assunto que circunda o comércio internacional, já que também
exportávamos vergalhões para um bom número de países e as exigências eram
igualmente rigorosíssimas.
Fomos bem sucedidos, mas para tanto contratamos um eminente
professor paulista, destruidor de ícones, corajoso, que enfrentou a questão com
extrema competência e conseguiu provar – técnica e juridicamente – que um teste
inadequado de operação promovido pelo
IPT-São Paulo foi o verdadeiro responsável pela deformação dos tanques
fabricados.
Ganhamos a questão de forma retumbante, às custas de um laudo infeliz do maior instituto
tecnológico da América Latina e sou muito orgulhoso disso.
Melhor, aprendi um pouco do requinte e conheci as entranhas
do comércio internacional e, por essa razão, estranho a espetaculosidade
montada pela PF, de muito barulho, pouco resultado e de efeito colateral
terrível pelo dano que poderá causar a um setor produtivo que envolve 7,5% do
total das exportações brasileiras.
É surrealismo puro, um provável dano causado pelo frigorífico
de uma micro-empresa (EIRELI), na condição de um dos 21 apontados dentre cerca
de 4.800 existentes no país, repercutindo no comércio internacional pela
leviandade da PF. Não há como fugir do
lugar comum: Seria cômico, se não fosse trágico!