quarta-feira, 15 de abril de 2015

AS PENSÕES DE ESTUDANTE

 Uma lembrança de Nestor   Pinto morando numa pensão na Rua Barão de São Borja, despertou minha atenção para essa instituição muito respeitada na época: as pensões de estudantes.

Atualmente, poucos estudantes precisam se deslocar para Recife, a fim de cursar os cursos superiores uma vez que a interiorização de faculdades facilitou e muito a formação do 3º grau em muitos polos de ensino no interior do Estado.
Naquela época não existia, sequer, o segundo grau o que me obrigou, tão logo terminei o curso ginasial, ir estudar no Recife, para minha felicidade no Colégio Osvaldo Cruz, que me dá muito orgulho. Para hospedagem não tinha outra solução:  alguns raros internatos que ainda restavam ou as tradicionais pensões, sendo a maioria delas instaladas em casas de família que necessitavam melhorar suas rendas.

Essa circunstância me obriga, desde logo, a homenagear as incansáveis mães de família que, como heroínas, assumiam o terrível encargo de dirigir e manter, além de suas famílias, uma horda indisciplinada e moleca de estudantes, algumas vezes em períodos difíceis como foram os da guerra, em que até a comida escasseou. A sorte é que existia em todas as pensões um pacto, não expresso e formal, de respeitar-se os horários de estudo e de repouso. Eram sagrados!
Imaginem a trabalheira terrível a partir de cinco horas da manhã até nove, dez horas da noite, para dar contas das tarefas, sem as benesses que a tecnologia hoje proporciona.  Fogão à lenha ou carvão, toda comida era ralada ou passada nas antigas “máquinas de moer” e todo suco era espremido à mão, por falta de um simples liquidificador que surgiu muito depois como maravilha das coisas modernas. As geladeiras eram aparatos raros ainda não democratizados, por conta do custo e pela irregularidade do fornecimento de energia elétrica e, muito menos, batedeiras e lavadoras de pratos.

Os gêneros não perecíveis eram estocados em grandes despensas e as carnes, verduras, alguns legumes e frutas eram comprados quase que diariamente aos vendedores ambulantes de todos tipo de gêneros, que percorriam as ruas da cidade e, nessa relação, se estabeleciam as freguesias habituais. Dependia-se muito das pequenas mercearias e quitandas espalhadas pela cidade.
Honra, portanto, às queridas donas de pensão, heroínas do quotidiano que se matavam no trabalho para ajudar no sustento da família, enquanto alguns  “chefes” (ainda bem que raros) se regalavam em cadeiras de balanço e espreguiçadeiras.

Minha primeira pensão, a começar de janeiro de 1943, era localizada na Avenida João de Barros, naquele sobrado onde hoje abriga a Faculdade de Direito do Professor Pinto Ferreira, na confluência com a Rua Visconde de Suassuna. A sua localização era boa dada a sua proximidade com o Colégio na Rua D. Bosco, bem em frente daquele casarão lindo que abriga a Rádio Patrulha e me permitia ir à pé sem gastar transporte.
Fica difícil imaginar: os fundos das casas da João de Barros hoje cortadas pelas Ruas Tabira, Leopoldo Lins eram uma imensa campina, sem uma construção sequer, e o meu caminho para alcançar o colégio era uma vereda me levava diretamente ao Parque Amorim (chamado então Parque do Peixe-Boi) e daí então era só contornar o Colégio Americano Batista para alcançar a Rua D. Bosco.

A dona da pensão era Dona Balbina, tia do Padre Joel Moraes que trabalhou na Diocese de Garanhuns e foi professor no Diocesano, mãe de Dr. Orlando Moraes que foi depois Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado. Tenho poucas lembranças dos  companheiro de então, mas além de mim e meu irmão Ivaldo, um foi Cleodon Granja que se formou em medicina junto com Ivaldo e foi exercê-la em Palmares, sua terra natal.
Tempos difíceis de guerra, alimentação difícil, orçamento apertado, mas não tinha outro jeito e como sempre estudávamos até tarde, quem nos salvava era a interferência do cozinheiro, um negro homossexual maravilhoso chamado Virgílio que, escondido de D. Balbina, fazia uns lanchinhos e levava pra gente e, acreditem se quiser,  sem querer nada em troca. A pensão custava duzentos mil réis, o colégio oitenta mil réis e o caro era D. Maria lavadeira que morando na Mustardinha, toda semana levava e trazia a roupa pronta, sem esquecer os costumes de então que obrigavam paletó e os tecidos da época exigiam serem engomados. É incrível, mas para provar tenho uma fotografia da turma no encerramento do 2º grau, no dia 12 de dezembro de 1945, em que todos estão de paletó e em sua maioria de gravata. Não havia essa história de camisa esportiva!

Na crônica “Tempos de Guerra”, falei na mudança de costumes provocada pela guerra e bases americanas em Recife e Natal. Como não existia fábrica da Souza Cruz aqui, éramos obrigados a recorrer a duas pequenas fábricas de cigarro nativas e que atendiam à nossa mesada. O consumo era de um cigarro chamado “Atraentes”, em modesto rótulo vermelho, fabricado pela Caxias, que custava apenas oitocentos réis. A alternativa eram os cigarros americanos, logo contrabandeados, que chegavam aos montões para abastecer os “marines”, mas custavam cinco mil réis, absolutamente inviável para nosso minguado orçamento.
Lembro que na ocasião, houve um incêndio em um navio no Porto e ficávamos na calçada da pensão assistindo a passagem de carroças e mais carroças com os salvados de incêndio que o povo tratou de arrebatar e vender, por qualquer preço, cigarros, leites, queijos e muitos outros mantimentos destinados às bases americanas. A farra foi geral e pudemos passar bom tempo consumindo Lucky Stryke, Chesterfield, Pall Mall, Camel, Malboro, etc.  a baixo preço.

A seguir, quase no final da Avenida Conde da Boa Vista, ainda motivado pela facilidade de acesso ao colégio, fomos morar na pensão de Seu Inácio e Dona Maria, um casal já idoso, e o nosso alojamento era em uma água-furtada em quartos de parede de tabique. Cabia pouca gente e lembro apenas alguns companheiros: Aílton Ferreira Costa, grande amigo ainda hoje sustentando a mesma teimosia que eu para permanecer vivo, e dois estudantes de engenharia Humberto Baltar e Geraldo Muniz de quem não tenho notícias.
Daí saímos para a Rua das Ninfas, esquina com a Rua Manoel Borba, a pensão de Seu Lucas e Dona Maria. Quartos ocupando todo primeiro andar também de parede de tabique, e tivemos a companhia de muitos amigos como Célio Melo e seu irmão Lula, Genival Cesar, todos de Palmares e Clarindo Medeiros nosso companheiro e amigo desde o Diocesano e irmão de Benvindo Medeiros que muitos conheceram.

Aí vale o registro das presepadas de Clarindo que gostava de trajar bem, evidente elegância, sempre demonstrando uma seriedade pouco comum nos estudantes de qualquer época, mas extremamente moleque. Ocupava um pequeno quarto sozinho e, um dia, altas horas da noite, se escutou na escada um terrível grito de pavor que acordou toda a pensão. Pulou todo o mundo da cama, do jeito que estavam, de cuecas, de pijamas e até D. Maria trombou com a gente de camisola, no meio da escada.
Não foi identificada a razão do grito, nem seu autor e no dia seguinte estava Clarindo no café da manhã reclamando de D. Maria a falta de sossego e repouso em sua pensão que o estava deixando inclinado a mudar de pensão. E D. Maria se desculpando a “Seu Clarindo” como o tratava com todo o respeito. As invectivas eram fortes: canalhice, desrespeito, absurdos, etc. Somente tempos depois é que descobrimos que o autor da presepada foi Clarindo.

Aí chegou a vez da pensão de Dona Carmela, na rua Dom Bosco/esquina com a Rua Henrique Dias e a casa ainda está lá, a um  quarteirão do Colégio, e ocupávamos o melhor quarto da casa com três janelas de frente para a D. Bosco e ocupado por mim , Ivaldo e imaginem quem: o amigo Clarindo.
Vejam a trabalheira de D. Carmela, com um bando de filhos e quase sempre grávida, gerindo uma pensão com 45 (quarenta e cinco!) estudantes, sempre bem humorada e com uma paciência enorme no trato dos pensionistas. Os banheiros do primeiro andar ficava em longo alpendre, no meio dos quartos. Ocorre que na bela casa em frente, aonde hoje é uma loja do Super Mercado Extra , residia o respeitado Professor José Pires, casado com uma Lins e Silva, com muitas filhas, que obrigava a constantes reclamações do Professor a D. Carmela, dizendo ao telefone: “Carmela, mande esse povo se vestir” pois saiam de cuecas dos quartos em direção do banheiro, desfilando pelo alpendre.

Hoje, tenho a alegria de ser vizinho de porta de elevador há mais de quarenta anos, de uma das filhas do Professor, a querida Duse e o seu filho é como um sobrinho para mim. Era tanta gente que morava lá que lembro muito poucos. Não poderia esquecer Erasto, filho de Urbano Vitalino e Lucilo Maranhão titular de um excelente centro de exames em Recife, atualmente dirigido por uma filha sua.
Daí migrei para a Rua São Borja nº 232, pensão de Dona Nina e Seu Osvaldo que tinham os filhos Mauro e Carmita e mais um terceiro que não lembro o nome. Filha de italianos, Sr. Lauria, que a visitava sempre, era expert em cozinha e por conta disso começamos a passar melhor em matéria de comida.

No seu tempo Nestor, o Cinema Politeama ainda funcionava ? Pergunto porque era um dos poucos lazeres disponíveis para nós. Saíamos da pensão do jeito que estávamos, de chinelo e em manga de camisa para ir ao chamado “Polipulga”. Lembro até o porteiro do cinema, um senhor de meia idade chamado Tibúrcio que se contentava, às vezes, com um retumbante “Boa Noite, seu Tibúrcio” como ingresso, quando sabia que estávamos com a mesada esgotada.
Na casa vizinha à nossa, residia o Professor Brito Alves, eminente jurista e pai de Roque, Toinho, Sebastião que morando no primeiro andar confinavam-se com os nossos no mesmo andar. O intercâmbio era inevitável para acompanhar as notícias de guerra pelo rádio e a luta pela redemocratização do país que eclodiu com mais força no dia 3 de março de 1945 (completou há pouco 70 anos) resultando na morte do estudante Demócrito de Souza Filho na sacada do Diário de Pernambuco, vitimado pelas balas da polícia do Estado Novo.

Tarde da noite, quando a fome apertava ao fim de um longo estudo, o jeito era ir a pés até à confluência da Rua do Hospício com a Praça Maciel Pinheiro apanhar um sanduiche na Leiteria Vitória que já existia naquela época. Vale observar a fonte daquela praça, ainda hoje existente (graças a Deus, não conseguiram destruir ainda!) que considero uma das mais belas fontes que conheci até hoje na minha vida e nas minhas andanças.
Lembro ainda que a Rua Barão de São Borja, nessa época de insuportável anti- semitismo, era o centro da colônia israelita da cidade que se espraiava por toda a redondeza e pelo menos 30% de minha turma no Colégio, era composta por queridos companheiros dessa origem. Desconfio que o Osvaldo Cruz pela sua liberalidade, era o preferido da colônia, desde que não existia ainda o Colégio Israelita do Recife.

 Tempos difíceis, mas saudosos!

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